COMO É QUE SE CONTINUA?
- Enfrentando as dores da jornada -
“Como se recupera a sua vida antiga? Como é que se continua? Quando em seu coração, você começa a entender que não há volta... Há certas coisas que o tempo não pode concertar, alguns machucados que vão tão fundo que serão eternos”
— Frodo Bolseiro, em “O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei”[1]
A Providência
“Tanto a tempestade quanto o sol são Providência de Deus”
Quatro pequenos hobbits do Condado saíram para uma jornada, Frodo Bolseiro, Samwise Gamgi, Meriadoc Brandebuque (Merry) e Peregrin Tûk (Pippin), juntos, eles embarcaram em uma aventura épica na Terra Média. Mas, não seria uma jornada fácil ou de férias, poderíamos dizer que teria mais desventuras no caminho do que uma feliz aventura. A missão de Frodo, o portador do Anel, era de levar o anel até a Montanha da Perdição, e lá ele ser destruído e, por consequência o Senhor do Escuro não poderia mais ter o anel, assim, suas forças, seu exercito e ele mesmo seriam aniquilados. A jornada seria difícil, lutas, dores e sofrimentos os aguardariam. A única maneira de destruir o Anel, segundo Gandalf, o Cinzento, seria encontrar as Fendas da Perdição nas profundezas de Orodruin, a Montanha de Fogo, e atirar o Anel ali.
Após, toda a dura e sofrida jornada até a Montanha da Perdição, ao chegar lá Frodo desistiu de destruir o Anel, caiu na tentação de ficar com ele, mas por um evento da Providência (e não do destino ou acaso), o Anel conseguiu ser destruído. Gollum, uma criatura que tentou durante a jornada enganar os hobbits e tomar o Anel, agarrou Frodo na beira do abismo, tomou o Anel dele, mas no momento em que erguia os olhos para se regozijar com sua presa, deu um passo grande demais, tropeçou, vacilou por um momento na beirada e caiu nas profundezas, dando seu último gemido. Não foi somente o anel que foi destruído, mas o ambioso Gollum também.
Lembrar da Providência nessa cena, nos traz a reflexão para a vida peregrina e providencial deste mundo. Em nossa jornada, haverá lutas difíceis, dores e sofrimentos. Haverá “golluns” tentando nos enganar e em nossa missão de lutar contra o pecado, seremos tentados a mudar nossas rotas para caminhar com ele - pecado.
Mas, diferentemente dos deístas que creem em um deus como se fosse um relojoeiro que cria um relógio, dá corda e deixa-o funcionando, nós cremos em um Deus que criou todas coisas, todo o cosmos, e não o abandonou, Ele continua providenciando todas as coisas para Sua criação. Ele é um Deus pessoal, que se envolve ativamente conosco e ouve nossas orações. Ele não é só o Deus da Providência, Ele é a própria Providência.
Frodo e Sam na jornada até a Montanha da Perdição, passaram pela tentação do anel, por lutas e perigos, pelos enganos do Gollum, pelo sol escaldante e fortes tempestades e pela Shelob, a Laracna uma terrível aranha, uma criatura gigantesca e maligna que habitava as cavernas de Cirith Ungol, ela era um perigo mortal para eles e uma das muitas criaturas temíveis que habitam a Terra Média. Mesmo, assim eles conseguiram chegar ao lugar próprio para destruir o anel. Não vemos a Providência só no momento crucial da destruição do Um Anel, mas durante todo o caminho deles até lá.
Quero te lembrar de uma coisa importante sobre a Providência. Tanto a tempestade quanto o sol são Providência de Deus. Ele não criou tudo e abandonou. Mas mantêm e cuida de tudo que criou. O mesmo Deus que permite uma tempestade em nossas vidas, é o mesmo que nos protege durante ela e, quando ela passar, o sol Ele fará brilhar!
Lembre-se:
“O Senhor ajuda os que caíram e levanta os que estão encurvados sob o peso de suas cargas. Os olhos de todos estão voltados para ti com esperança; tu lhes provês o alimento conforme necessitam. Quando abres tua mão, satisfazes o anseio de todos os seres vivos.”
— Salmo 145.14-16, NVT
A Caminho de Casa
“Há certos ferimentos que não podem ser totalmente curados”
Há uma fala de Frodo, no final do filme “O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei”, que não está originalmente no livro. Essa fala está no contexto de sua volta ao Condado, depois da jornada acima que acabei de relatar até a Montanha da Perdição e destruição do Anel, onde ele disse: “Como se recupera a sua vida antiga? Como é que se continua? Quando em seu coração, você começa a entender que não há volta...Há certas coisas que o tempo não pode concertar, alguns machucados que vão tão fundo que serão eternos”.
Entretanto, no livro propriamente dito, no capítulo VII – A Caminho de Casa, os hobbits estavam ansiosos por ver novamente o Condado, cavalgavam devagar, pois Frodo sentira-se mal, e durante todo aquele dia, Frodo ficou em silêncio, o qual foi quebrado assim:
— Você está sentindo dores, Frodo? perguntou Gandalf numa voz baixa, cavalgando ao seu lado.
— Bem, estou disse Frodo. É meu ombro. O ferimento dói, e a lembrança da escuridão pesa sobre mim. Está fazendo um ano hoje.
— É lamentável mas há certos ferimentos que não podem ser totalmente curados - disse Gandalf.
— Temo que esse possa ser o meu caso - disse Frodo. - Não existe um retorno de verdade. Embora eu possa voltar, o Condado não será o mesmo, pois eu não serei o mesmo, fui ferido por faca, ferrão e dente, sem falar no fardo que carreguei por tanto tempo. Quando poderei descansar?
Gandalf não respondeu.
Ao fim do dia seguinte a dor e a inquietação tinham passado, e Frodo estava alegre de novo, alegre como se não se lembrasse da escuridão do dia anterior. Depois daquilo, a viagem transcorreu bem, e os dias se passaram depressa; eles cavalgavam com tranquilidade, e frequentemente se demoravam nos belos bosques onde as folhas estavam vermelhas e amarelas ao sol do outono.[2]
Frodo, tomou uma decisão: levar e destruir o anel. Mas, durante a jornada ele não conseguiu evitar que muita coisa acontecesse, como tomar uma facada por exemplo ou cair nas teias da Laracna, onde até o Sam, seu fiel amigo de jornada achou que ele tinha morrido.
Você já deve ter dito alguma vez: — Ah! Se eu pudesse voltar no tempo, poderia ter sido diferente, eu poderia ter sofrido menos, poderia ter feito escolhas melhores, não teria sofrido tanto.
Mas, foi pensando justamente nessa fala que todos nós falamos às vezes, que comecei dizendo sobre a Providência de Deus. Pois, a Providência de Deus, está totalmente ligada a Sua Soberania. Ele tem autoridade e controle absoluto sobre todas as coisas. Isso significa que Deus governa e dirige tudo de acordo com Sua vontade e propósito. Embora, temos nossa “livre agência” durante a jornada de nossas vidas, também temos nossas responsabilidades pelas decisões que tomamos, sejam elas boas ou ruins. Entranto, o consolo está justamente na Soberania e Providência de Deus, pois nada sai do controle dEle. Ele é o Senhor e Dono da história de nossas vidas.
Se há sombrias tempestades durante a jornada, se altas marés tentam nos afogar, se tomamos punhaladas, ou “facadas” como Frodo, se amigos desistem de nós por um momento, achando que já estamos desfalecidos, se tudo parece estar caminhando para um terrível fim, lembremos que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito “ (Rm. 8.28), até as dores, o bravo mar, tempestasdes e “punhaladas” cooperam para o nosso bem, o Deus da Providência transforma o mal em bem (Gn. 50.19-20). Mas, a pergunta final é: Como é que se continua (depois de passarmos tudo isso)?
Nossas Feridas
“Diga-me como você encara o sofrimento, e eu vou dizer quem você é”
Eu disse em outro lugar, que a morte e a ressureição de Cristo não anularam, não passaram um corretivo, não tirou as suas feridas (para compreender um pouco mais, sugiro que leia todo o capítulo 20 do Evangelho de João e meu outro artigo entitulado: “Agnus Dei: A Páscoa, O Cordeiro Pascal e a Ressurreição”[3].
O que quero dizer com isso? Após passarmos sofridas feridas em momentos de nossas vidas, queremos esquecer ou apagar o que vivemos. Queremos por assim dizer passar uma borracha. Mas não é possível, as feridas continuam. Assim, como continuaram nas mãos de Jesus e no seu lado. Ele ressuscitou com elas. Como disse Frodo: - Há certas coisas que o tempo não pode concertar, alguns machucados que vão tão fundo que serão eternos. A grande a pergunta é, o que vamos fazer com elas? Como tiramos delas o antídoto para dores futuras ou para ajudar quem está a nossa volta? Como podemos transformar a nossa ferida em algo abençoador? As feridas de Jesus falam muito sobre Jesus. As tuas feridas falam muito sobre você. As minhas feridas falam muito sobre mim. Diga-me como você encara o sofrimento e a dor, e eu vou dizer quem você é. Os nossos sofrimentos, as nossas dores, as nossas lágrimas, dizem muito sobre quem nós somos.
Frodo em seu regresso da jornada, em sua volta para o Condado, após passar tudo que passou, ele não era mais o mesmo, disse: — Fui ferido por faca, ferrão e dente, sem falar no fardo que carreguei por tanto tempo. Sim, eu e você, também não seremos mais os mesmos. Mas, quero desafiar você a lembrar-se da Providência e do consolo do Senhor durante toda a jornada de sua vida. Isso não faltará. Olhe para Ele. Nossas feridas, criam “castas” em nós e, elas nos deixam cada vez mais fortes para enfrentarmos as próximas que virão (e elas virão até fecharmos os olhos nesse mundo ou até nosso Senhor voltar).
Como é que se continua? Eis meu desafio: consolando outros. Como assim? Vejamos o que o apóstolo Paulo nos diz, na sua segunda carta aos Coríntios, capítulo 1, versos 4 à 6:
“É ele que nos conforta em toda a nossa tribulação, para podermos consolar os que estiverem em qualquer angústia, com a consolação com que nós mesmos somos contemplados por Deus. Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor, assim também a nossa consolação transborda por meio de Cristo. Mas, se somos atribulados, é para o vosso conforto e salvação; se somos confortados, é também para o vosso conforto, o qual se torna eficaz, suportando vós com paciência os mesmos sofrimentos que nós também padecemos.”
— 2 Coríntios 1.4-6, ARA
Aqueles que foram consolados por Deus, podem esperar que Deus os colocará em contato com outros que estão passando por problemas e sofrimentos semelhantes aos teus. Já percebeu isso? Por que? Para que você possa compartilhar o consolo que recebeu e têm recebido de Deus.
Frodo, falou sobre suas feridas, mas também sobre o fardo que carregou por muito tempo (o “Um Anel”), e que queria descansar. Realmente, levar e destruir o anel, era um grande fardo. Mas, que Frodo conseguiu levar com a ajuda de seus amigos, com a ajuda da “Sociedade do Anel”. Aqui, está o papel sinérgico da Igreja de Cristo – dar suporte – suportar uns aos outros. Pois, o Senhor não nos coloca fardos que não podemos carregar (1 Cor. 10.13). Se carregamos eles em algum momento de nossas vidas, é porque Deus sabia que iríamos suportar. Nosso próprio Senhor e Salvador Jesus nos disse:
"Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve".
— Mateus 11.28-30, NVI
Haverá sempre explicações?
“Quando poderei descansar? Gandalf não respondeu”
O pequeno Frodo regressando para o condado, conversando com Gandalf, após falar para ele sobre suas dores e feridas durante a jornada até Montanha, perguntou: — Quando poderei descansar? Gandalf não respondeu. Diante de uma pergunta sobre todos os males que passou na jornada, Frodo não obteve resposta do sábio mago Gandalf, o Branco. Houve silêncio. Isso me fez lembrar, o que disse o querido HDL (Rev. Hernandes Dias Lopes), em uma exposição certa vez sobre a vida sofrida de Jó: Restauração sim, explicação nem sempre, a qual se tornou um livro:
“Deus não nos prometeu explicações, ele nos deu promessas. Muitas vezes teremos perguntas não respondidas, questões graves, que ficarão sem resposta ao longo da vida. Muitas vezes o silêncio de Deus nos incomodará mais que o próprio sofrimento. Muitas vezes nossas orações são indeferidas ou não são respondidas conforme gostaríamos. Isso pode nos afligir, pelo menos durante algum tempo, mais que a dor que lateja em nosso peito. Não importa os perigos da jornada, você sempre chegará salvo e seguro. Deus não lhe promete ausência de luta, mas certeza da vitória. Deus não lhe promete caminhada fácil, mas chegada certa”.
Não foi prometido ausência de luta para Frodo e Sam, alías eles foram alertados dos perigos da jornada. Não houve explicações para suas perguntas. Assim, como muitas vezes não haverá para as nossas. O silêncio de Deus vai nos incomodar. Orações parecerão não ser respondidas. E isso pode até nos afligir por um tempo. Mas, passará. Os dias passaram depressa para Frodo e, ele pode contemplar a beleza. Como diz a oração de Teresa D'Ávila: “Tudo passa, Deus não muda, a paciência tudo alcança, a quem tem Deus tem, nada falta: só Deus basta. Eleva o pensamento, ao céu sobe, por nada te angusties, nada te perturbe”. Tudo passa. O dia escuro anterior passará. O que aconteceu ao final do dia seguinte com Frodo? “Ao fim do dia seguinte a dor e a inquietação tinham passado, e Frodo estava alegre de novo, alegre como se não se lembrasse da escuridão do dia anterior”.
Realmente, não houve respostas para as perguntas de Frodo, mas ele voltou seguro para a casa. Foram vários os perigos da jornada, mas eles chegaram salvos e seguros. Não foi prometido a eles ausência de perigo, mas a vitória veio com certeza. A jornada deles não foi fácil, mas a chegada foi certa. Os peregrinos regressaram em segurança providencial. Assim, também é e será conosco. Portanto, devemos continuar mesmo que não encontremos explicações, mesmo parecendo que nossas orações não são respondidas, devemos continuar.
Assim, como disse o peixe cirurgião-patela Dory, no filme “Procurando Nemo”: — Continue a nadar, continue a nadar, continue a nadar, nadar e nadar! Mesmo contra a correnteza desse mundo tenebroso, com terríveis “tubarões” inimigos das nossas almas nos rodeando querendo nos devorar, mesmo que tudo pareça perdido em alto mar. Continue a nadar, a nadar, a nadar! Afinal, já sabemos que Deus nos providenciou um “barco seguro” para voltarmos ao lar.
Passado o momento de escuridão do dia anterior “a viagem transcorreu bem, e os dias se passaram depressa; eles cavalgavam com tranqüilidade, e freqüentemente se demoravam nos belos bosques onde as folhas estavam vermelhas e amarelas ao sol do outono”. Aprendemos, que não devemos nos preocupar com amanhã – os dias passarão depressa - e Deus já está lá cuidando deles, na Sua Providência e Soberania. Que possamos apreciar também durante a jornada, assim como Frodo, os belos bosques do Criador, graças a Ele, nem sempre será inverno, o sol do outono virá, pois basta cada dia o seu mal (Mt. 6.34). Mas, isso será assunto para o nosso próximo artigo: “E quando o inesperado acontece? Encarando o dia mal.
Ad maiorem Dei gloriam!
Em Cristo, em Fé, Esperança e Amor:
Levi Elias de Almeida Ceccato, esposo, pai, professor e escritor. Presbítero da Primeira Igreja Presbiteriana do Brasil em Rio Claro - SP. Licenciatura em História pelo Centro Universitário Claretiano. Bacharel em Teologia pelo Seminário Reformado ESUTEL. Pós-grad. “Especialização em Educação Cristã”, no Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper - CPAJ, mestrando Artes da Religião (MA), com ênfase em Teologia Histórica no Puritan Reformed Theological Seminary dos EUA. Host do PodCast - Coram Deo. Autor da série “Um Conto do Ordinário”, original Pilgrim. Editor da João Calvino Publicações. Amante da boa literatura e da teologia serva de Deus.
[1] Essa fala de Frodo foi extraída do filme “O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei”, não consta no livro.
[2] TOLKIEN, J. R.R. O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2000, p. 269.
[3] https://leviceccato.substack.com/p/agnus-dei-a-pascoa-o-cordeiro-pascal